EM TORNO DO NATAL
"Pus-me a desembrulhar a vida, desfazendo-a dos invólucros que a encobrem até descobri-la no seu íntimo.
Não foi fácil. Primeiro, foram-se espalhando pelo chão pedaços de papel lustroso com restos de laçarotes. Era todo o mundo de aparências, feito de máscaras, de rótulos e de preconceitos. Depois, tive de rasgar o papel pardo das superficialidades, cheia de rotinas cinzentas, de cabeças baixas, de rostos anónimos, de corridas para aqui e para ali, por entre desencontros... Por fim, apareceu-me uma caixa de cartão com muitas palhinhas lá dentro. Eram todas as promessas e enganos, rodeadas de discursos de intenções, projectos que ficam no papel, palavras cheias de ruído mas vazias de força para mudar a mundo. Tirado tudo isto, pareceu-me que não havia absolutamente mais nada.
Voltei a pesquisar entre os pedaços espalhados pelo chão até que descobri um pequeno búzio, oculto entre as palhinhas. Era um búzio como tantos outros, memória do mar e sopro do sonho. Dias e dias, teho dedicado muitas horas a brincar com o búzio, procurando entendê-lo. Atá agora, aprendi que a sua voz só surge no meio do silêncio, fechando os olhos e apagando as imagens que me povoam o cérebro. De início, parece apenas o constante murmúrio das ondas nos rochedos. Às vezes cresce, transformando-se numa música suave, mas quase sempre o murmúrio vai-se esbatendo, pulsando rítmico como um coração, ou sugerindo o bater das asas de um pássaro, ou ainda a ternura que se exprime no leve tocar da pele. Só por uma vez já consegui acompanhar a voz do búzio até ao momento sublime da carícia do olhar. Nos meus olhos fechados, nasceu então, aos poucos, a imagem do presépio da minha infância, EM NOITE DE NATAL."
(António Cardoso Ferreira, em Viragem, nº 33, Dez. 1999)
Com este texto bonito, que nos fala da vida, (da nossa, da de muitos ou de todos), que nos faz recuar até às noites mais ou menos gostosas da nossa infância, desejo a todos os meus leitores um Natal com muita cor, com luz a jorros, daquela que ilumina por fora e por dentro e nos penetra desfazendo as sombras e transformando-as na aurora luminosa de um Novo Ano.